25 de fevereiro de 2007

TEMPO: DIAS....

O domingo que findou deixou um gosto de cinza, e já o pensamento se vira para segunda-feira. Mas para mim, não há segunda-feira, nem domingo: há dias que se empurram uns aos outros em desordem, e depois, bruscamente ...
Nada mudou e, entretanto, tudo existe de outra maneira. Afinal é exactamente o contrário: talvez não preze nada no mundo como o momento vivido, mas ele vem quando quer; e abandona-me tão depressa! Fico tão seca quando se vai embora. Far-me-á estas curtas visitas irónicas para me mostrar que falhei na vida?"
Era o fim de domingo. Como pude escrever ontém. Não tenho necessidade de fazer frases. Escrevo para aclarar circunstâncias? Não. Desconfiar da literatura!! É preciso escrever ao correr da pena, sem procurar as palavras.
Tenho necessidade de me lavar com pensamentos abstratos, transparentes como água. Bruscamente sente-se que o tempo corre, que cada instante conduz a outro instante, e o que pertence á formula é transportado para o conteúdo. Em suma, esse famoso correr do tempo, fala-se muito dele, mas quase não se vê.
E assim é o tempo, com maneiras tão curiosas de recordar...
Será que andamos com as recordações no corpo, na pele, em cada sentido, em...?
Bendito seja o tempo que deixa que as cicatrizes passem a formar parte da geografia própria do corpo e da alma.

20 de fevereiro de 2007

JOGAR AO SOM DA MÚSICA

De momento é o Jazz que está a tocar; não há melodia, só notas, uma miríade de breves sacudidelas:não têm descanso, uma ordem inflexivel fá-las nascer e destrói-as, sem lhes deixar um momento para tomarem folêgo, para existirem por si. Elas correm apressam-se, dão-me ao passarem de fugida, uma pancada seca, e voltam ao nada.Gostava de as apanhar, mas sei que se chegasse a agarrar uma, só me ficaria um som ordinário e sem vida: conheço poucas expressões asperas e mais fortes.
Começo a reanimar-me, a sentir-me feliz. Há ainda outra felicidade: fora de mim há aquela faixa de aço, a duração limitada da música que atravessa o nosso tempo de lado a lado, e o recusa, e o rasga com as suas pontas secas e agudas; há um tempo diferente. A voz desliza e desaparece: a música penetra nestas formas vagas e atravessa-as. Parece-me isso inevitável, tão forte é a necessidade desta música: nada pode interrompê-la, nada deste tempo em que o mundo se afundou; a música cessará por si própria, no momento preciso. Se gosto desta bela voz é sobretudo por isso: não é pelo seu volume, nem pela sua tristeza, é que ela é o acontecimento, que tantas notas prepararam, de tão longe, morrendo para que ele nascesse. E todavia, estou, inquieta; bastaria tão pouca coisa para fazer parar o disco: uma peça que se quebrasse, um capricho. Como é estranho, como é comovedor, que esta insensibilidade seja tão frágil! Nada pode interrompê-la, e tudo pode quebra-la.
Extingue-se o último acorde. No curto silêncio que segue sinto imensamente uma mudança, sinto que alguma coisa aconteceu.
Silêncio
Some of these days
You'll miss me
O que acaba de acontecer é que o silêncio desapareceu. Quando a voz se levantou no silêncio, senti o meu corpo contrair-se, dissipou-se.
bruscamente era quase penoso tornar-se assim duro, rutilante. Ao mesmo tempo a duração da música dilatava-se, como uma tromba marinha, com a sua transparência metálica, esborrachando contra a parede o nosso tempo miserável. Agora estou dentro da música. Nos espelhos rolam bolas de fogo; cercam-nos aneis de fumo, que giram encobrindo e descobrindo o sorriso duro da luz. O meu copo de cerveja encolheu, está acalcado contra a mesa: tem um ar de coisa densa, indispensável. Quero agarrá-lo, tomar-lhe o peso, estendo o braço...Meu Deus! Eis o que mudou; foram sobretudo os meus gestos, as minhas palavras? O movimento do meu braço desenvolveu-se como um tema magestoso, insinuou-se ao longo da canção da preta; tive a impressão de dançar. O rosto está ali, projectado na parede de chocolate; dir-se-ía que está muito perto de mim, mas não.Vi-o no momento em que a minha mão se fechava: tinha a evidência a necessidade de uma conclusão. Aperto o copo na mão, olho para.... sou feliz?
"JOGO"!
Uma voz destaca-se ao fundo. Atira de um rasgo a carta para a mesa. A manilha de ouros. Mas o homem sorri, debruçado sobre a mesa, espia-o de revés, pronto para o ataque.
"JOGO"!
A mão surge da sombra, plana um instante, depois pica de subito como um milhafre, com o polegar e indicador, preme uma carta contra o pano.
O perfil do rei de copas aparece entre uns dedos crispados.
Belo rei, que veio de tão longe, cuja saída foi preparada por tantas combinações, por tantos gestos extintos. Ei-lo que desaparece por sua vez, para que nasçam outras combinações, e outros gestos, ataques, réplicas, vicissitudes da sorte, uma infinidade de pequenas aventuras.
Estou emocionada: sinto o meu corpo como uma máquina de precisão em descanso. Eu, sim, tive vontade de aventuras. Mas, não me lembro do que não tive percebendo o encadeamento rigoroso das circunstâncias. Atravessei mares, deixei cidades ficar para trás e subi os rios ou penetrei pelas florestas e buscava sempre outras cidades.
JOGUEI: e nunca podia voltar atrás, como um disco não pode girar ao contrário. E tudo isto me leva aonde? A este minuto, a este assento, a esta bolha de claridade, sussurrante de música.
And when you leave me
Sim, eu, estou aqui a viver o mesmo segundo, que estes jogadores de manilha, a ouvir a preta cantar, enquanto lá fora erra a noite indecisa.
O disco parou.
A noite entrou melífula, hesitante. Não se vê mas está presente; turba a luz dos candeeiros.
Está frio.
Bom, vou-me embora
Levanto-me...., daqui a pouco vou ao cinema...
O ar faz-me bem, mas Santo Deus, que frio que está!!!
Como é sensivel a minha pele....
Some of these days....

18 de fevereiro de 2007

DIAS....

Nunca é o meu dia.
Não o encontrei. Não procuro o meu dia, procuro os dias, procuro-me a mim nos dias, procuro os dias em mim. Verdades fantasias, e tempos que me tocaram e...
Beijos que me roçaram os lábios e não soube beijar. Respeito e cordialidades eclipsadas pelo sonho que cubrio a possibilidade.
¿És o meu dia?

ENCONTRAR....PROCURAR....?

Há algum tempo, alguém me disse:"encontrar" não é consequência de "procurar", mas sim algo completamente oposto. Quem procura não encontra. Procurar é fixar um objectivo, e assim, está concentrado nele. Não verá o que o rodeia. Com sorte, abre os olhos, e encontra!!!

PAISAGEM

Desejei-te pinheiro à beira-mar

para fixar o teu perfil exacto.

Desejei-te encerrado num retracto

para poder-te contemplar.

Desejei que tu fosses sombra e folhas

no limite sereno desta praia.

E desejei... que nada me distrai-a dos horizontes que tu olhas

Mas frágil e humano grão de areia não me detive à tua sombra esguia.


(Insatisfeito, um corpo rodopia na solidão que me rodeia.)

AUSÊNCIA

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado. Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
  • Vinicius de Moraes

POEMA DE CETIM

És como a luz do despertar
Que aparece sorrateiramente
Quando a lua começa a raiar.
Ganhas poder na minha mente,
Preenches com aroma a jasmim
O ar deste espaço sem fim.
Tentei, mas é inútil procurar.
Estás lá de uma forma ausente
Que não me permite a ti avistar,
Mas deixa-me sentir-te omnipresente
Em todo e nenhum lado junto a mim
Sempre pronta para te dizer "sim".
Não sei como explicar...
O teu mexer, simplesmente
Consegue meu pensar iluminar,
Apagar a melancolia deprimente,
Esquecer o que me é ruim.
Só tu me fazes sentir assim...

Envolta em cetim.

11 de fevereiro de 2007

A....caminho


MOMENTO

Uma espécie de céu
Um pedaço de mar
Uma mão que doeu
Um dia devagar
Um Domingo perfeito
Uma toalha no chão
Um caminho cansado
Um traço de avião
Uma sombra sozinha
Uma luz inquieta
Um desvio na rua
Uma voz de poeta
Uma garrafa vazia
Um cinzeiro apagado
Um hotel na esquina
Um sono acordado
Um secreto adeus
Um café a fechar
Um aviso na porta
Um bilhete no ar
Uma praça aberta
Uma rua perdida
Uma noite encantada
Para o resto da vida
Pedes-me um momento
Agarras as palavras
Escondes-te no tempo
Porque o tempo tem asas
Levas a cidade
Solta me o cabelo
Perdes-te comigo
Porque o mundo é o momento
Uma estrada infinita
Um anuncio discreto
Uma curva fechada
Um poema deserto
Uma cidade distante
Um vestido molhado
Uma chuva divina
Um desejo apertado
Uma noite esquecida
Uma praia qualquer
Um suspiro escondido
Numa pele de mulher
Um encontro em segredo
Uma duna ancorada
Dois corpos despidos
Abraçados no nada
Uma estrela cadente
Um olhar que se afasta
Um choro escondido
Quando um beijo não basta
Um semáforo aberto
Um adeus para sempre
Uma ferida que dói
Não por fora, por dentro
  • Pedro Abrunhosa

MOVIMENTOS....

À claridade ameaçadora, ao medo e ao rancor
Ao medo, ao amor e à desnecessidade,
Quando nos interstícios da tua memória,
Vão passando gestos, confissões, encontros,
Pedaços de espelho partidos, convite para uma viagem ingénua,
E a carruagem cheia, a regularidade citadina do trânsito, da manhã, do almoço,
Dos comboios, dos apitos, a regularidade mesquinha
A regularidade da erva, que nasce de preferência nos citios onde corre a água,
A erva que havia ao lado da porta, da tua porta...
Não precisas dizer-me
Que precisas chorar...
Fala enquanto eu ouço a tua voz que vem de longe...
De longe... longe...
Estou aqui, para isso atravessei pastos e montanhas de esquecimento,
Olhos turvos e dedos como urtigas, desfiladeiros da esperança,
kilómetros de compromisso com os metais do ódio, nuvens e nuvens de Combustão, cheiro de pele transpirando, mexendo-se, corando, andando,
Atirando pequenas setas na rua.
Sim, de tudo isso eu sei, ou sabe o meu orgulho.
A caligrafia nervosa, com que enche os papeis quadriculados, com as tintas,
Os trapos e as conjecturas, e o primeiro andamento de Petrusccha.
Enquanto e ao mesmo tempo, tiras de ali uma chave enferrujada com que abres Uma lata de folhas de conservas.
Imaginas então que a muralha da China está aqui, no momento em que Escondes, debaixo do lençol a aventura...
Quando batem à porta, acordas e tiras cauteloso, do miolo do travesseiro,
Uma harmónica que na rua começou a tocar
A tocar para quê?
E tu pensas se será possivel, escrever o cenário, o poema, a música,
E dar vida....
A porta, a prateleira, a cortina obedecem à força com que irrompes pela manhã Clara.
Trazes nos olhos tudo: o teu retrato, o teu primeiro retrato,
A tua egoísta preplexidade no barbeiro.
Ela, os olhos d'ela,
les yeux portugais d'ela, qui avaient du vert partout,
A crise, a inocência que nasce, e continua dormindo, a viagem.
Os rios onde se pendura, alguns dos teus projectos mais humanos.
Acompanham-te as lívidas companheiras;
Uma a que te pega docemente na mão direita,
Tem por ti a lembrança de uma fonte,
Duma coberta de um navio,
Dum chão de ervas macias,
Dum colar de pérolas,
Dum pássaro que inesperado voa,
Numa praia sem barcos, sem homens, sem mulheres,
Numa praia, sem barulho e com saudade,
Numa praia só de estrelas e areia.

Outra , a que acarícia
A tua outra mão, vai comentando em silêncio
Mais vagas...mais vagas...

Um ninho, o cuidado que as aves têm em fazer um ninho...
Um perfil de alguém que se não conhece...
Uma lágrima...
A marca toujours de uma caneta de tinta permanente...
As tentativas a toda a hora para encontrar-te...
Uma pequena alegria qualquer, esquecida...
A noite que não foi possível prolongar a posse.
E esse rastro luminoso e de bronze,
Esse barco, esse esquife.
Esse ramo de rosas, do aroma das rosas, das crucificadas rosas...
No pulso do ritmo, no pulmão da palavra, no coração, em toda a parte,
Sou eu responsável?
Não, pela letra, pela ordem, pela perene música,
Que brota, intacta, da tua boca, sou eu responsável? Não...Não.
Adorador de qualquer coisa ainda inacabada, luz que nesta hora és flor sem espinhos, alma sem medo, destino sem aflição, alegria sem mácula, luz...
Que tem casas e camas e trabalho e poemas e divertimento,
Deixa que o teu corpo seja
A visita do vento,
O beijo que ainda as bocas não deram,
Um qualquer lugar
Para a minha vontade de cumprir e amar.
Quando a noite e o dia se assemelham
À lisa geometria desta mesa, é que oscilante e molhado,
Há quem busque a mais firme e secreta forma de receber-te.


7 de fevereiro de 2007

EU


Eu
Que crio quimeras
Que pinto o que sinto
Que danço ao balanço
Dos sons musicais...
Que animo as cenas
Das peças serenas
Que faço poemas
para não chorar...
Que toco viola
Que dou o que sou
Que canto sem pranto
Que rio a fio
Que lanço um pavio
P'ra acender um lar
Que sei dar conselhos
Fé mesmo aos mais velhos
E que ao dar consolo
Sem mais esperar...
Que sou impulsiva
Se me estão a ofertar
Sinto-me incompleta
Pois não sei amar...

PENSEI

Sabes, pensei em ti ontém à tardinha,
Quando o sol ao longe,
Nas vestes de um monge
Que era a noite, se escondia,
Pensei em ti...
Enquanto o sol brilhava
Brincando comigo
Como um velho amigo,
Sorrindo enquanto eu cismava,
Mas anoiteceu.
O sol desapareceu no horizonte
Deixando no ar
Doirada ilusão.
E as sombras errantes
Vestidas de noite
Desfolham violetas
No meu coração.