11 de fevereiro de 2007

MOVIMENTOS....

À claridade ameaçadora, ao medo e ao rancor
Ao medo, ao amor e à desnecessidade,
Quando nos interstícios da tua memória,
Vão passando gestos, confissões, encontros,
Pedaços de espelho partidos, convite para uma viagem ingénua,
E a carruagem cheia, a regularidade citadina do trânsito, da manhã, do almoço,
Dos comboios, dos apitos, a regularidade mesquinha
A regularidade da erva, que nasce de preferência nos citios onde corre a água,
A erva que havia ao lado da porta, da tua porta...
Não precisas dizer-me
Que precisas chorar...
Fala enquanto eu ouço a tua voz que vem de longe...
De longe... longe...
Estou aqui, para isso atravessei pastos e montanhas de esquecimento,
Olhos turvos e dedos como urtigas, desfiladeiros da esperança,
kilómetros de compromisso com os metais do ódio, nuvens e nuvens de Combustão, cheiro de pele transpirando, mexendo-se, corando, andando,
Atirando pequenas setas na rua.
Sim, de tudo isso eu sei, ou sabe o meu orgulho.
A caligrafia nervosa, com que enche os papeis quadriculados, com as tintas,
Os trapos e as conjecturas, e o primeiro andamento de Petrusccha.
Enquanto e ao mesmo tempo, tiras de ali uma chave enferrujada com que abres Uma lata de folhas de conservas.
Imaginas então que a muralha da China está aqui, no momento em que Escondes, debaixo do lençol a aventura...
Quando batem à porta, acordas e tiras cauteloso, do miolo do travesseiro,
Uma harmónica que na rua começou a tocar
A tocar para quê?
E tu pensas se será possivel, escrever o cenário, o poema, a música,
E dar vida....
A porta, a prateleira, a cortina obedecem à força com que irrompes pela manhã Clara.
Trazes nos olhos tudo: o teu retrato, o teu primeiro retrato,
A tua egoísta preplexidade no barbeiro.
Ela, os olhos d'ela,
les yeux portugais d'ela, qui avaient du vert partout,
A crise, a inocência que nasce, e continua dormindo, a viagem.
Os rios onde se pendura, alguns dos teus projectos mais humanos.
Acompanham-te as lívidas companheiras;
Uma a que te pega docemente na mão direita,
Tem por ti a lembrança de uma fonte,
Duma coberta de um navio,
Dum chão de ervas macias,
Dum colar de pérolas,
Dum pássaro que inesperado voa,
Numa praia sem barcos, sem homens, sem mulheres,
Numa praia, sem barulho e com saudade,
Numa praia só de estrelas e areia.

Outra , a que acarícia
A tua outra mão, vai comentando em silêncio
Mais vagas...mais vagas...

Um ninho, o cuidado que as aves têm em fazer um ninho...
Um perfil de alguém que se não conhece...
Uma lágrima...
A marca toujours de uma caneta de tinta permanente...
As tentativas a toda a hora para encontrar-te...
Uma pequena alegria qualquer, esquecida...
A noite que não foi possível prolongar a posse.
E esse rastro luminoso e de bronze,
Esse barco, esse esquife.
Esse ramo de rosas, do aroma das rosas, das crucificadas rosas...
No pulso do ritmo, no pulmão da palavra, no coração, em toda a parte,
Sou eu responsável?
Não, pela letra, pela ordem, pela perene música,
Que brota, intacta, da tua boca, sou eu responsável? Não...Não.
Adorador de qualquer coisa ainda inacabada, luz que nesta hora és flor sem espinhos, alma sem medo, destino sem aflição, alegria sem mácula, luz...
Que tem casas e camas e trabalho e poemas e divertimento,
Deixa que o teu corpo seja
A visita do vento,
O beijo que ainda as bocas não deram,
Um qualquer lugar
Para a minha vontade de cumprir e amar.
Quando a noite e o dia se assemelham
À lisa geometria desta mesa, é que oscilante e molhado,
Há quem busque a mais firme e secreta forma de receber-te.


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