20 de fevereiro de 2007

JOGAR AO SOM DA MÚSICA

De momento é o Jazz que está a tocar; não há melodia, só notas, uma miríade de breves sacudidelas:não têm descanso, uma ordem inflexivel fá-las nascer e destrói-as, sem lhes deixar um momento para tomarem folêgo, para existirem por si. Elas correm apressam-se, dão-me ao passarem de fugida, uma pancada seca, e voltam ao nada.Gostava de as apanhar, mas sei que se chegasse a agarrar uma, só me ficaria um som ordinário e sem vida: conheço poucas expressões asperas e mais fortes.
Começo a reanimar-me, a sentir-me feliz. Há ainda outra felicidade: fora de mim há aquela faixa de aço, a duração limitada da música que atravessa o nosso tempo de lado a lado, e o recusa, e o rasga com as suas pontas secas e agudas; há um tempo diferente. A voz desliza e desaparece: a música penetra nestas formas vagas e atravessa-as. Parece-me isso inevitável, tão forte é a necessidade desta música: nada pode interrompê-la, nada deste tempo em que o mundo se afundou; a música cessará por si própria, no momento preciso. Se gosto desta bela voz é sobretudo por isso: não é pelo seu volume, nem pela sua tristeza, é que ela é o acontecimento, que tantas notas prepararam, de tão longe, morrendo para que ele nascesse. E todavia, estou, inquieta; bastaria tão pouca coisa para fazer parar o disco: uma peça que se quebrasse, um capricho. Como é estranho, como é comovedor, que esta insensibilidade seja tão frágil! Nada pode interrompê-la, e tudo pode quebra-la.
Extingue-se o último acorde. No curto silêncio que segue sinto imensamente uma mudança, sinto que alguma coisa aconteceu.
Silêncio
Some of these days
You'll miss me
O que acaba de acontecer é que o silêncio desapareceu. Quando a voz se levantou no silêncio, senti o meu corpo contrair-se, dissipou-se.
bruscamente era quase penoso tornar-se assim duro, rutilante. Ao mesmo tempo a duração da música dilatava-se, como uma tromba marinha, com a sua transparência metálica, esborrachando contra a parede o nosso tempo miserável. Agora estou dentro da música. Nos espelhos rolam bolas de fogo; cercam-nos aneis de fumo, que giram encobrindo e descobrindo o sorriso duro da luz. O meu copo de cerveja encolheu, está acalcado contra a mesa: tem um ar de coisa densa, indispensável. Quero agarrá-lo, tomar-lhe o peso, estendo o braço...Meu Deus! Eis o que mudou; foram sobretudo os meus gestos, as minhas palavras? O movimento do meu braço desenvolveu-se como um tema magestoso, insinuou-se ao longo da canção da preta; tive a impressão de dançar. O rosto está ali, projectado na parede de chocolate; dir-se-ía que está muito perto de mim, mas não.Vi-o no momento em que a minha mão se fechava: tinha a evidência a necessidade de uma conclusão. Aperto o copo na mão, olho para.... sou feliz?
"JOGO"!
Uma voz destaca-se ao fundo. Atira de um rasgo a carta para a mesa. A manilha de ouros. Mas o homem sorri, debruçado sobre a mesa, espia-o de revés, pronto para o ataque.
"JOGO"!
A mão surge da sombra, plana um instante, depois pica de subito como um milhafre, com o polegar e indicador, preme uma carta contra o pano.
O perfil do rei de copas aparece entre uns dedos crispados.
Belo rei, que veio de tão longe, cuja saída foi preparada por tantas combinações, por tantos gestos extintos. Ei-lo que desaparece por sua vez, para que nasçam outras combinações, e outros gestos, ataques, réplicas, vicissitudes da sorte, uma infinidade de pequenas aventuras.
Estou emocionada: sinto o meu corpo como uma máquina de precisão em descanso. Eu, sim, tive vontade de aventuras. Mas, não me lembro do que não tive percebendo o encadeamento rigoroso das circunstâncias. Atravessei mares, deixei cidades ficar para trás e subi os rios ou penetrei pelas florestas e buscava sempre outras cidades.
JOGUEI: e nunca podia voltar atrás, como um disco não pode girar ao contrário. E tudo isto me leva aonde? A este minuto, a este assento, a esta bolha de claridade, sussurrante de música.
And when you leave me
Sim, eu, estou aqui a viver o mesmo segundo, que estes jogadores de manilha, a ouvir a preta cantar, enquanto lá fora erra a noite indecisa.
O disco parou.
A noite entrou melífula, hesitante. Não se vê mas está presente; turba a luz dos candeeiros.
Está frio.
Bom, vou-me embora
Levanto-me...., daqui a pouco vou ao cinema...
O ar faz-me bem, mas Santo Deus, que frio que está!!!
Como é sensivel a minha pele....
Some of these days....

1 comentário:

BARCO ALADO disse...

Enquanto lia e entendia a precisão de cada ligação, cada palavra cada frase, tão bem combinadas, descrição fantastica, senti-me entrar nesse mesmo local e ver-te, até o piscar de olhos, até o cruzar de pernas, até as tuas sapiens mãos.
Adorei este texto. Adoro como escreves. Adoro como pensas.
Adoro todos os pormenores que congelas.
TESOURA