10 de março de 2007

PARA OUVIR... O som das Palavras

Eles são.
E eu também quis ser. Não quis mesmo outra coisa; eis a última palavra sobre este ciclo de vida: no fundo de todas aquelas tentativas que pareciam desligadas encontro sempre o mesmo desejo: expulsar a existência para fora de mim, esvaziar os instantes, torçê-los, secá-los, purificar-me, para produzir, enfim, o som nítido e preciso de uma nota de saxofone. Teria aqui, matéria para um apólogo: era uma vez uma pobre que se tinha enganado de mundo. Existia, como as outras pessoas, no mundo dos jardins públicos, dos cafés, das cidades comerciais, e queria persuadir-se de que vivia noutro sítio, por trás da tela dos quadros, com os doges de Tintoreto, com os bons florentinos de Gozzoli, por trás das páginas dos livros, por trás dos discos de gramofone, com as longas queixas secas dos conjuntos de jazz. E um dia, depois de ter feito muito tempo de imbecil, percebeu, abriu os olhos, que as cartas estavam mal dadas: estava precisamente no café, diante de um copo de cerveja morna. E nesse momento preciso do outro lado da existência, nesse outro mundo que se pode ver de longe, mas sem nunca lá chegarmos, uma melodia pôs-se a cantar e dançar: "É como eu que se deve ser; é preciso sofrer a compasso."
A voz canta:
Some of these days
you'll miss me
Devem ter riscado o disco neste sítio, porque se está a ouvir um barulho esquisito. E há qualquer coisa que aperta o coração: é que a melodia não é afectada, nem ao de leve, por este pequeno tossicar da agulha sobre o disco. A melodia está lá tão longe - lá tão atrás! Também isso eu compreendo: vou tomar o comboio. Mas por trás do existente a melodia permanece a mesma, firme, como uma testemunha sem piedade.
A voz calou-se. Ouve-se arranhar um momento, depois o disco pára. Libertada dum sonho importuno, o café rumina, remasca o prazer de existir. Eu, estou quase a adormecer.
Dentro de um quarto de hora estarei no comboio, mas não penso nisso. Penso no português escanhoado, que sofoca de calor no frio, no andar de uma casa, e o céu arde, inflama-se o azul do céu, enormes chamas amarelas vêm lamber os tectos; o português suspira e escorre-lhe o suor pelas faces. Está sentado em mangas de camisa, diante do piano; tem gosto de chiclet na boca, e, vagamente, um fantasma de vento na cabeça."Some of these days" afundar-se -ão ambos nas poltronas de couro, e o fogo do céu irá flamejar-lhes nas gargantas de toda a água que beberam, e sentiram o peso de um imenso sono tórrido. Mas é preciso primeiro registar as notas desta música, a mão húmida agarra o lápis que estava em cima do piano "Some of these days you'll miss me". Foi assim que a coisa se passou. Assim ou de outra maneira, pouco importa. Foi assim que esta música nasceu.Foi o corpo pouco gasto do português que ela escolheu para nascer. Ele segurava no lápis, caiam gotas de suor no papel. E porque não eu? " "Maria" não se importa de pôr o disco outra vez? Só mais uma vez antes de ir embora". Dá à manivela e a música recomeça. Mas já não penso em mim. Penso no fulano de lá longe que a compôs, num dia de Jullo, no calor negro da praia. Tento pensar nele através da melodia, dos sons brancos e acidulados do saxofone. Foi ele que fez isto. Tinha aborrecimentos, nem tudo corria, para ele, como devia correr. Mas ouço a canção, acho o seu sofrimento e a sua transpiração... Ele teve sorte. Aliás nem deve ter dado por isso, mas trabalhou o pormenor de tudo. Sim, senhor!, é a primeira vez, de há uns anos para cá, que um homem me parece comovente. Gostava de saber, sobre ele e de poder pensar nele, de vez em quando, a ouvir este disco. No lugar dele eu sentir-me -ia feliz; invejo-o. Tenho de me ir embora. Levanto-me mas fico um momento hesitante; gostava de ouvir a negra cantar. Pela última vez. Ela canta. Eis que os dois estão salvos. Julgaram-se talvez perdidos de todo, afogados na existência. E, todavia, ninguém podia pensar em mim, como eu penso nele, com esta doçura. Sinto qualquer coisa que tìmidamente roça por mim, e não ouso mexer-me, porque tenho medo de a afugentar. Qualquer coisa de que já não me lembrava: uma espécie de alegria.
A negra canta. Pode-se então justificar a nossa existência? Um pouco, muito pouco? Sinto-me extraordináriamente intimidada. Mas sou como uma pessoa completamente gelada, depois de uma viagem na neve, que entrasse de chofre num quarto morno, ficaria imóvel ao pé da porta, ainda fria e que lentos arrepios me percorreriam o corpo. Some of these days you'll miss me.
Vou-me embora... e a negra continua.....chegou o comboio, tenho de subir.
Talvez um dia, num lugar, a uma hora, num momento.

1 comentário:

Anónimo disse...

Sempre algo nos leva a levantar ancora.
Preciosa a forma como descreves tds as pequeninas coisas...os movimentos, os sons...
Demais
Tesoura