23 de outubro de 2008

Sem Palavras

Gostava que alguma lucidez me assaltasse agora de mansinho. Só para conseguir discorrer sobre alguma coisa que realmente importe a alguém. Mas, já se sabe, conheço de antemão a minha incapacidade discursiva e a luz da madrugada que magoa os olhos míopes faz-nos crer que tudo ou nada é essencial. E quase se morre de sufoco. Talvez seja perda de tempo. As prioridades hão-de sempre estar trocadas, isto de acordo com as ideias mais básicas de cada um: dinheiro, amor, ou a tal desejada liberdade, de que muitos falam e poucos lhe sentem o cheiro. Pouco importa, também já se sabe. A futilidade de certas pessoas sempre me assustou. E digo futilidade com a plena consciência de que também eu pertenci e pertenço a esse grupo de cada vez que me deixo invadir por preocupações que em nada me dizem respeito. Nunca fui de muitas palavras, é um facto. Em vez disso, gosto que se agigantem em mim.
Gosto de ter noção de que são mesmo valiosas e que estão finalmente dispostas a ser oferecidas aos outros.
O corpo não me pede para dormir esta noite. E a inquietação dá lugar a palavras escondidas e emoções falhadas. Não tenho culpa.
Preciso de me salvar antes que o cinismo tome conta de mim. E sei que nada disto faz sentido para a maioria das pessoas. Sei que penso trinta vezes antes de falar ou agir exceptuando o nervosismo feliz de determinadas situações e que o meu silêncio incomoda.
Sou assim, ponto final. Um dia, isto dito no imprevisto dos acasos que resgatam muitas vezes a alma às pessoas, disseram-me num sorriso que eu era transparente. Choro, coro, e rio com muita facilidade. É verdade. Foi, até hoje, um dos elogios mais bonitos e sinceros que já me fizeram. E eu não esqueci. Porque sei que essa transparência se tem perdido, sem rasto, entre os meus dias vazios. E eu queria muito quebrar certos silêncios. Dizer o que me preocupa ou o que me faz sentir bem e feliz. Mas também sei que há quem partilhe comigo, quase na clandestinidade, esses silêncios entendidos feitos de pequenos gestos. Hoje tentei em vão, falar de silêncios entendidos. Aqueles transparentes que aconchegam o coração. E eu sei que nem toda a gente os percebe. Muitos mais são os que os julgam ser tristeza. Talvez. Mas só a tristeza de não saber como tocar fundo na alma das pessoas...
Sem palavras...

2 comentários:

Anónimo disse...

Slatkavoda,
Gostei imenso de ler este texto. Eu tenho a minha verdade, que vale o que vale, limitada na minha própria subjectividade.
Na verdade, deixamo-nos seduzir pela racionalidade e pela sua suposta exactidão na perscrutação do mundo, aceitamos isso como lógica, exacta e absolutamente coerente; quando na verdade apenas retoricamente ajustamos o nosso entendimento do mundo a partir de associações análogas daquilo que estão ao alcance de nosso olhar. Poderíamos chamar a isso indução ontológica? Poderíamos, mas o que interessa são as consequências práticas dessa indução.
As consequências práticas disso é que nos vermos embrenhados numa sociedade cheia de deveres-ser essencialistas que nos fazem desempenhar papéis cujos fundamentos não podem ser abstraídos da sua existência. A angústia em se perceber, sendo obrigado a ser o que não somos, sem saber o que queremos ser, isso obriga-nos a assumirmos os papéis que querem que desempenhemos; papéis vazios e sem significado.

Bem, fico-me por aqui. Parabéns pelo excelente texto!

Slatkavoda disse...

Darwin,

Obg, pelo comentário, és sempre bem vindo. O que vou escrevendo sem nenhuma crise existencialista são palavras que fluem de momentos, "vividos" na 2ª ou 3ª pessoas resultantes da observância que vou fazendo do que me rodeia em relação a comportamentos, acções, etc. Imaginate numa estação de comboios, observa, e acabas por descrever, escrever, pintar, desenhar, e formas uma tela de melhor ou menor qualidade. Tens muito por onde divagar. Posso relatar com o "eu", mas não sou eu.

bjs